domingo, 25 de abril de 2010

(Re)encontro.

Ela estava na minha frente, os longos cabelos ruivos presos numa trança mal feita que caía embaraçada no ombro esquerdo, os olhos esverdeados secos que sempre me prenderam a atenção e as sardas que pareciam mais fortes do que na última vez em que eu a vira. Seria possível que andara tomando sol, ela, tão avessa ao sol?
- Você tem tomado sol, Clara?
- Nós estamos em pleno inverno, Marcelo.
- Eu sei...
Continuou me olhando com aqueles olhos verdes secos e grandes que mais pareciam velhas bolitas de gude das quais o brilho havia se extinguido pelo tempo - quando a vi pela primeira vez, não conseguia abandonar o pensamento de que seria ótimo pingar algumas gotas de colírio naqueles olhos. Cheguei a me prometer que faria isso -. Era sempre assim: chegava sem avisar, examinava a casa bagunçada com aquele olhar desaprovador que eu odiava tanto, perguntava sobre o cachorro e por último, finalmente, passava uns bons minutos me encarando em silêncio.
O tempo passava e ela ficava mais bonita. Envelhecer é um privilégio de que poucas mulheres tiram proveito – a maioria está preocupada em demasia tentando disfarçar o tempo vivido, o que é uma tolice em se tratando do tempo, sempre tão impiedoso em relação às marcas que deixa. Mas Clara era diferente... Ela possuía em seu semblante esse ar de mulher vivida, de sabedoria que se adquire com o tempo, o que a deixava ainda mais irresistível. E lá estávamos nós, parados, um de frente para o outro, apenas a mesinha com algumas revistas e o cinzeiro entre nós. A mesinha e o acanhamento que nos envolvia.
Eu sempre tive medo de quebrar o silêncio. Ela continuava me olhando daquele jeito intenso e desconcertante dela, eu cada vez mais perdido nos olhos secos que sugavam toda a serenidade que havia em mim, deixando-me na companhia indesejada de um desespero que me tomava e fazia sacudir cada parte do meu corpo, aquela sensação de vazio que me preenchia todo, a vontade de gritar tão alto até que a garganta fosse capaz de rasgar e que eu pudesse sentir o gosto do sangue fresco. E doía olhá-la, aquela mulher que outrora não estranharia se eu esticasse o braço e tocasse suas mãos fechadas em punho sobre os joelhos. E ela sabia que doía em mim porque, de alguma forma, o meu sofrimento era tão exorbitante que se fazia sentir quase que como matéria pela sala.
Finalmente perguntou pelo que eu já esperava porque havia sido assim nos últimos três meses e agora se repetia como numa peça que era ensaiada do começo ao fim:
- Como você está?
Eu estou morrendo, Clara, eu estou morrendo e sinto a minha alma dilacerada como carne que se corta em pedaços pequenos o suficiente para que se possa mastigar e destroçar mais e mais. Já não posso suportar acordar e não ver os seus cabelos cor de fogo espalhados no travesseiro do lado do meu, já não consigo lidar com essa sua ausência que se faz presente o tempo todo, essas suas sardas que eu já perdi as contas faz tempo, tanto tempo...
- Eu estou... bem. E você, han? E o Guilherme?
- Ah, estamos bem... O Guilherme está trabalhando pra uma grande empresa no centro da cidade agora, nós estamos até pensando em nos mudar pra um lugar maior. Você sabe como eu nunca gostei muito de lugares apertados, sem jardins bonitos e cachorros brincando neles. Escute, Marcelo, eu tenho que ir agora, tenho um compromisso mais tarde e ainda preciso passar em casa e me arrumar.Sempre um compromisso. A mesma desculpa para fugir dos mesmos constrangimentos. Fiquei me perguntando se as visitas dela seriam uma forma de não me fazer esquecer da sua existência – como se isso fosse possível -, se ela gostava de ver o sofrimento que eu fazia questão de não esconder nos meus olhos ou se ela simplesmente gostava de situações embaraçosas. Pensei em jogar-me aos seus pés e implorar para que não me deixasse mais, para que não beijasse mais outros lábios que não os meus, tão sedentos dos seus beijos, meus braços tão saudosos dos seus abraços... Pensei também em dar-lhe um tapa no rosto e ordenar que me deixasse em paz, que não voltasse a me atormentar com a sua visão novamente.
Entretanto, deixei-a ir, como sempre fiz, e ela já havia se despedido e ia em direção ao carro quando eu abri a porta de casa num ímpeto e gritei: “Clara!” Ela se virou, o cenho franzido, e perguntou o que era.
- Você tinha um jardim aqui. E um cachorro que brincava nele.
Então seus olhos, sempre secos, encheram d’água que começou a escorrer pela face sardenta tão rapidamente que eu tive a certeza de que ela estivera segurando o choro o tempo todo. Aqueles olhos molhados que eu havia imaginado por cinco anos porque nunca a tinha visto chorar, aqueles olhos que eu imaginava que só fossem ficar úmidos no dia em que ela finalmente me deixasse pingar algumas gotas de colírio. Soltou um soluço baixo, secou ligeiramente o rosto e sorriu um sorriso cansado.
- Eu sei...
Foi embora, o corpo pequeno e pálido contrastando com o vestido verde escuro. Dez anos depois eu tive notícias de Clara, casada e com um filho de seis anos. Nunca mais voltou: uma vez que havia chorado na minha frente, nós dois sabíamos que ela deixara-se ser tão completamente que não poderia voltar a me encarar.

por Aurora Guimarães

2 comentários:

  1. A beleza contrastante de um olhar é matéria prima deste texto, o qual, parece-nos ser, de uma escrita fina, requintada pela descrição; nada exagerada. Algo belo que mostra como o nosso país possui em suas escritoras a mais bela, ou uma delas, forma de literatura. Leitor, diante dos vossos olhos está uma escritora, digo isso porque há alma no texto, que mantém fielmente traços da Clarice Lispector. A alma da mulher no dedilhar, inter-cruzar as linhas na intenção do abrir as asas da imaginação para o mundo - universo. A mulher nua e crua, esculpida linha a linha por estes dedos, que prometem. Cabe a você, agora, deixar-se levar por esses fluxões literários. Parabéns!!! Texto na excelência.

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  2. Eu tenho muito orgulho dessa minha prima! Parabéns pelo texto Ló!:)

    Camila

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